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São João do carneirinho: Senhor do Bonfim

Homero trouxe o seguinte verso (e ele sabia das coisas)
“Minha ilha é áspera, mas boa para criar os filhos
e não sei de outro lugar tão suave sobre a Terra
quanto a terra de onde um homem veio.”
(Odisseia, Canto 9, Tradução de Mario Sérgio Conti)
E é sobre de onde eu vim que, pela primeira vez, posto hoje. 
Volto à cidade de Senhor do Bonfim, de onde saí há 20 anos atrás, duas vezes por ano, no São João e na Semana Santa. Por fatores externos à minha vontade, não tive como ir na Semana Santa (o gato adoeceu), razão pela qual mais saudade se depositou no meu coração. 
 
Chegamos em Senhor do Bonfim, norte da Bahia, 360km de distância de Salvador, ainda na noite de quinta-feira, dia 21/06/2012. A seca da região foi sentida mesmo na estrada, pela enorme quantidade de bichos no asfalto – com a seca muitos animais vão para a beira da pista comer o pouco de verde que resta.

No dia seguinte, percebemos que a cidade já estava toda preparada para a festa. Bandeirolas em todas as ruas principais: Da Praça Nova do Congresso, a central da cidade,
 
                  
até “o calçadão”, uma rua de pedestres com lojas dos dois lados, que ganhou uma placa de “shopping calçadão” (ignorada solenemente pelos moradores), o clima de São João já estava instalado.


Considero que minha cidade tem duas atrações imperdíveis, a festa de São João e a sua feira – segunda maior do Nordeste, segundo o site da prefeitura, com 1,2km de extensão. Para o São João até a Prefeitura se enfeitou.
 
Fomos logo à feira, onde há de bode seco a animais vivos. 

 

 

E o seu São João, embora tenha uma festa enorme que atrai muitos jovens de Salvador, o forró do Sfrega, ainda mantém a tradição dos pequenos forrós, com diversos trios e bandas tocando durante todo o dia, tanto no Calçadão, como na praça Dr. Antonio Gonçalves. 

 

Alguns dos blocos mais tradicionais saem pelas ruas, adentrando nas casas com a banda de forró e todos os animados participantes. Como o bloco Caroá, que no dia 23 percorre as Praças Lauro de Freitas, Praça Nova do Congresso, Rua Barão do Cotegipe, Rua Mariano Ventura, Rua Dr. Costa Pinto, Avenida Salvador, Rua Laurindo Maia e Rua Juvêncio Fialho.

 

E as casas se preparam para entrar no clima.

 

À noite todos se reúnem no Arraiá da Tapera em um local para mais de 50mil pessoas. A nova “praça” possibilitou a colocação de dois palcos para os shows se revezarem sem intervalo e uma enorme quantidade de barracas de comes e bebes. Tradicionalmente o São João acontecia na Praça Nova (bem menor e sem toda essa infraestrutura), coisas da modernidade.

 

No dia 23 de Junho, acontece o evento mais importante do São João, ao menos para os espadeiros – a Guerra de Espadas.  

Para quem não sabe do que se trata, vai uma explicação acadêmica:

“Certamente, a espada é um artefato bastante antigo, com pelo menos seis ou sete séculos de existência, mas que veio passando por várias transformações em suas funções ao longo do tempo. A guerra que presenciamos atualmente é resultado mais direto de transformações ocorridas ao longo de mais ou menos um século, e caracterizasse pela disputa galhofeira entre grupos visando o controle de determinado espaço, utilizando-se para tanto um artefato pirotécnico, a espada. Esta, ao que tudo indica, é de origem árabe do século XIV tendo função inicialmente bélica, posteriormente passando a de sinalização portuária e marítima na Europa
O termo espada liga-se, de imediato, ao fato de ser possível a sua manipulação 
por parte do guerreiro, como é chamado aquele que vai para as batalhas de espada, as guerras de espada. O feixe de luz propiciado pela queima da pólvora, quando é noite, produz uma imagem muito bela e, poder-se-ia dizer,  uma imagem ao mesmo tempo temida e fascinante, ainda mais quando associada ao seu efeito sonoro, assemelhando-se a uma espada em movimento, uma arma-brinquêdo animada e até mesmo dotada de “personalidade”, melhor dizendo, de mana transmitido da parte do fabricante, do possuidor, ao objeto possuído; senão que mana reivindicado por aquele que, mesmo 
sem tê-la fabricado, à utiliza em confiança de ser  fortalecido por seu poder. Esta, a espada, objeto caracteristicamente significativo em sua ligação com a fantasia que se forma em torno da ideia de nobreza guerreiras e castas medievais androcêntricas. Aliás, esse medievalismo, um medievalismo ibérico combinado à herança oriental e moura, parece inscrever-se em muito da produção estética sertaneja brasileira, uma certa mitologia do sertão encantado. (Carvalho, 2009)
 
Neste dia 23/06, como nos outros 15 anos, encontrei com grandes amigos para celebrar o São João, como nossos pais e avôs. Parte de minha família (tias, primos e irmãs) também participa. Seguramente uma das experiências mais fantásticas, a guerra de espadas proporciona momentos de concentração, consciência corporal, adrenalina, amizade e solidariedade como poucas. E durante todo o ano, a memória das últimas guerras reaviva os sentimentos de tradição e pertencimento (e é por isso que sempre voltamos).

 

 

No município de Cruz das Almas, o Ministério Público entrou com ação para proibir a realização da guerra de espadas, o que foi determinado em uma decisão liminar. Resultado, vários espadeiros presos e uma diminuição no número de queimados. A condenável tentativa de apagar um movimento cultural pelo Judiciário, agindo como um super poder, ignorando a liberdade e tradições dos habitantes da cidade.
(A de azul sou eu)
 
A diferença entre a guerra de espadas de Senhor do Bonfim e de Cruz das Almas é apenas uma: a de Senhor do Bonfim tem dia, hora e lugar, exclusivamente nas ruas determinadas, no dia 23/06, a partir das 18h.
É um acordo tácito entre o Município e os espadeiros, que é obedecido ano a ano e, eventualmente, quando não cumprido, a Polícia Militar intervém. Não se solta espada nas praças principais, nem no local da festa noturna. Um carro de som circula durante todo o dia 23/06 avisando aos turistas onde ocorrerá a tradicional guerra. Com respeito e responsabilidade, somente se queima quem se arrisca a participar, com a plena consciência de seus atos.

 

Todos voltamos intactos, exceto o marido que teve uma leve queimadura na mão (estava sem luvas na mão esquerda, risco que não correremos no ano que vem). 

 

E para quem acha que é loucura, avisamos que a noite é de São João e queremos é ver foguete, como já dizia o aniversariante e homenageado deste ano Luiz Gonzaga:
São João sem Futrica
Nunca vi São João
Sem foguete, sem fogueira
Tric-trac, ronqueira
Busca pé e balão
Sem adivinhação
Milho assado e canjica
Sem sanfoneiro, é futrica
Pra mim nunca foi São João
 
Por isso
Quando chega o meio do ano
Eu correndo pro interior
Lá eu sou pedra, xexo miúdo
No sertão tenho tudo
Que aqui não há
Ah. Sou doidinho
Pro São João no meu lugar
E que venha a próxima Guerra de espadas, estão todos convidados!

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