Nossas leituras de viagem para China e a literatura de primeira que encontramos
A China nos surpreendeu em muitos pontos e posso dizer que antes mesmo de viajar. A literatura do país não é muito divulgada no Brasil e suponho que poucos tenham lido algo da enorme produção literária do grande país do leste.
Nas leituras de viagem para a China encontramos uma vida cotidiana perpassada por grandes acontecimentos.
Um país continental, peça chave em tantas guerras regionais e mesmo na 2º Guerra Mundial, palco de um dos regimes mais controvertidos da era moderna, que permaneceu fechado e intocado por tantos os anos para emergir ao conhecimento do mundo e do consumo no Século XX, só poderia produzir grande literatura. E produz.
Escolhi livros de diferentes naturezas para iniciar o contato com a China, que visitamos em março/abril de 2018. A quantidade de livros se avolumou mais do que eu imaginava e, quando dei conta, já tinha 12 volumes aguardando ser devorados.
Meu primeiro passo para uma viagem é comprar as passagens, normalmente em promoção escolhida através do site Melhores Destinos ou Skyscanner (não é jabá, é verdade :)). Passagens compradas, vou em busca dos livros e normalmente encontro ótimas indicações na Estante Virtual e em livrarias físicas (adoro papear com os vendedores da Leitura daqui de Salvador e pedir dicas).
A Camila do Blog Viaggiando tem um projeto super bacana de leitura de livros dos 198 países do mundo e sempre passo lá para ver o que ela leu do país a conhecer. Para a China, por exemplo, peguei a dica do livro Cisnes Selvagens e acabei lendo também a Imperatriz de ferro, da mesma autora.
Nossas leituras de viagem para China
Jung Chang
Cisnes Selvagens
O livro Cisnes Selvagens é uma ótima opção para começar conhecer a China. Conta a história de uma saga familiar, por todo o Século XX, passando pelos costumes imperiais antigos até a controversa revolução cultural de Mao Tse Tung.
“Você sabe o que é ser uma concubina? Você não gostaria de ser uma, gostaria? Você sabe, tem uma expressão de Confúcio: ‘Jiang-xin-bin-xin – Imagine que meu coração fosse o seu!’.”
Jung Chang, Cisnes Selvagens.
Me impressionou o relato de como a 2ª guerra mundial foi um desfile de crueldades não apenas pelos nazistas, mas também pelo Japão na ocupação chinesa. A história sobre mulheres a aproxima do livro “As boas mulheres da China”, com seus relatos detalhados da intimidade doméstica.
A parte mais extensa do livro está dedicada aos anos de instalação do regime comunista e o recrudescimento do controle sobre a população por Mao Tse Tung. Como filha de dois funcionários do regime comunista, o livro narra detalhes da estrutura e do pensamento dos líderes do partido.
Devorei o que sobrevivera da fogueira da biblioteca de meu pai. Havia as obras completas de Lu Xun, o grande escritor chinês das décadas de 1920 e 1930. Como morreu em 1936, antes da chegada dos comunistas ao poder, escapou de ser perseguido por Mao, e até se tornou um grande herói dele – enquanto o discípulo favorito e mais estreito colaborador de Lu Xun, Hu Feng, foi pessoalmente citado por Mao como contra-revolucionário, e aprisionado durantes décadas. Foi a perseguição a Hu Feng que levou à caça às bruxas em que minha mãe foi detida em 1955.
(…) Lu Xun não tinha ideologia, só um humanismo esclarecido. Seu gênio cético questionava todas as crenças. Foi outro cuja inteligência me ajudou a me libertar de minha doutrinação.
A coleção de clássicos marxistas de meu pai também me foi útil. Eu lia aleatoriamente, seguindo as palavras obscuras com o dedo, e perguntando que diabos aquelas controvérsias alemãs do século XIX tinham haver com a China de Mao. Mas era atraída por uma coisa que eu raramente encontrava na China – a lógica que perpassava um argumento. Ler Marx me ajudou a pensar racional e analiticamente.
Jung Chang, Cisnes Selvagens
A imperatriz de Ferro
O livro é a biografia de Cixi a concubina que, por muitas décadas, desempenhou papel importantíssimo nas decisões do império chinês. O livro arrebenta com concepções que podemos ter sobre a vida das concubinas, o papel das mulheres na China antiga e, principalmente, o papel protagonista de Cixi nas decisões que levaram à China moderna.
A miríade de interesses de Cixi, além da política, facilitou-lhe aceitar a situação. E ela se concentrou na busca de prazeres. EM 1896, por ocasião do Festival da Lua, que caiu em 21 de setembro, depois de costurado o pacto secreto com a Rússia, ela convidou vários cortesãos para uma comemoração no Palácio de Verão. Foram recebidos na Quinta da Balaustrada de Jade, a yu-lan-tang, situada à direita da borda do lago, de onde se tinha uma vista panorâmica. Era a residência do imperador, mas Cixi atuou como anfitriã.
Jung Chang, A Imperatriz de Ferro.
Em alguns momentos, o distanciamento entre a autora e a biografada parece desaparecer e vemos uma defesa fervorosa de atitudes imputadas à Cixi, mas nada que retire a beleza e importância histórica do livro. Mesmo porque é muito difícil ser indiferente à mulher mais relevante da história chinesa.
Fruto de pesquisa apurada em diversos documentos dos arquivos na China, como decretos imperiais, documentos da corte, cartas pessoais, diários e até fotos! Documentos de estrangeiros, como o diário da Rainha Vitória e correspondências diplomáticas também foram usados na pesquisa. A leitura pode ser um pouco cansativa para quem não gosta de história e política, mas as intrigas e reviravoltas são interessantes.
Yu Hua
Crônica de um vendedor de Sangue
O pequeno romance de Yu Hua trata de um camponês na China dos anos 50, mas poderia ser escrito em várias épocas. Em verdade, perdemos um pouco a noção do tempo ao ler o livro, o que torna a história universal.
Nesse mesmo dia, Xu Sanguan voltou para casa, vindo do campo. Ao chegar na cidade, já escurecia. Naquele tempo, as ruas ainda não tinham iluminação pública, mas lanternas vermelhas pendiam dos beirais de algumas lojas, lançando faixas desiguais de luz no calçamento. Caminhando para casa, a figura de Xu Sanguan ora mergulhava na escuridão, ora aparecia com clareza.
Yu Hua, Crônica de um vendedor de sangue
A queda no tempo real se dá quando as medidas do Estado, deslocadas das realidades dos personagens, os afetam profundamente, o que acontece mais e mais, misturando-se à complexidade afetiva das vidas ali tratadas.
Cito um trecho que poderia ser lido em voz alta, em cima de um púlpito ou um coreto ou mesmo em meio a uma multidão. Um trecho que pode alertar sobre qualquer regime que se impõe para esmagar o pensamento diferente, não tolerar a imaginação e liberdade.
E quando perdemos tudo para o totalitarismo e o fanatismo, temos a voz de Yu Hua
“Você já soube: Sabe por que as fábricas fecharam, por que as lojas estão sem funcionar e por que não há aulas nas escolas: Sabe por que não tem de ir fritas roscas? Por que umas pessoas se enforcaram nas árvores e outras estão trancafiadas em estábulos, quase morrendo de tanto apanhar? Sabe por quê? Sabe por que assim que o presidente Mao diz uma coisa, as pessoas pegam o que ele disse faz uma canção, escrevem suas palavras nas paredes dos prédios e no calçamento das ruas, nos carros e nas barcas, em lençóis e travesseiros, nas canecas e panelas, e até nas paredes dos banheiros e escarradeiras? Sabe que o nome do presidente Mao espichou e ficou enorme? Ouça: Ele é o “Presidente Mao, Grande Líder, Grande Mestre, Comandante e Timoneiro Supremo, Oxalá Viva Dez Mil Anos’! São quatorze palavras ao todo, e a pessoa tem que dizer tudo de um só fôlego, sem pausa. Sabe o porquê disso tudo? Porque a revolução cultural Chegou!”
Xu Sanguan disse: ” Estou começando a entender o que é essa Revolução Cultural. Na verdade, é apenas uma ocasião para ajustar velhas contas. Se alguém te ofendeu no passado, agora você pode fazer uma acusação contra essa pessoa, com caracteres grandes, e colar o cartaz na parede de uma rua. Você pode acusar o sujeito de ser um proprietário de terras não reeducado, um contrarrevolucionário ou o que vc quiser. Afinal, não existem mais tribunais nem polícia, só um monte de crimes diferentes. Você escolhe o crime que quiser, faz um cartaz, espera e fica assistindo à multidão caçar até a morte a pessoa que você acusou.”
Yu Hua, Crônica de um vendedor de sangue
O livro foi um dos meus preferidos nas leituras de viagem para a China e termina de forma muito simples e redentora. Recomendo.
Pearl S. Buck
A boa Terra
A ganhadora do Nobel de literatura de 1938, Pearl Buck é uma escritora americana que teve como principal tema o oriente. Morou a infância e parte da juventude na China, para onde retornou após o casamento, até ser pressionada a sair pela revolução chinesa.
O livro “A boa terra” de Pearl S. Buck vendeu mais de 2 milhões de cópias nos primeiros dois anos, um best seller para época (e uma ótima quantidade até hoje). Essa minha edição é de 1981, há versões mais novas, eu comprei em uma banca de livros no centro histórico de Salvador.
Nessa edição há um prefácio da autora de 1949 (pós 2ª guerra), interessantíssimo, em que ela disse algo que me tocou profundamente:
Os chineses persistem e haverão de sempre persistir. Mil anos são mil anos, e o povo chinês tem vivido muitos milhares de anos. O momento presente, este século cheio de inquietação, não poderá destruir os alicerces do passado. (…) Pela primeira vez, depois de muitos anos, peguei novamente o livro, para ver se não estava desatualizado. Não adiantaria fazer uma nova edição de um livro que está fora de época. Se a velha China tivesse sucumbido, se não mais existissem homens como Wang Lung e O-lan, se eles agora pertencessem à História, então era melhor que fossem sepultados.
A Boa Terra, Pearl S. Buck
Passando pelas estreitas ruas do meu hutong em Pequim, percebi que Pearl S. Buck estava certa, que personagens como Wang Lung ou O-lan (sua esposa) continuam caminhando por ai, tentando se adaptar às mudanças que a vida os impõe e a fazer a vontade prevalecer sobre elas. Se adaptando no que é impossível ter e sofrendo as dores, como qualquer mortal.
J. G. Ballard
O Império do Sol
O livro Império do Sol virou filme com direção de Steven Spilberg e é ideal para quem gosta de drama e aventura. Conta a história de um menino da alta classe inglesa, que mora com os pais em Xangai e que se perde em plena segunda guerra mundial, quando Xangai é tomada pelos japoneses.
O próprio autor foi preso em um campo de concentração japonês durante a guerra, juntamente com sua família, mas o relato que apresenta é de uma criança sozinha, vagando, sendo presa, fugindo, sendo protegida precariamente e aprendendo a se preservar.
Mas o Sr. Maxted dormia pacificamente. Uma saliva cinzenta surgia entre as moscas em seus lábios e nos de outros prisioneiros próximos. Uma hora depois, já com a chuva parada, os faróis de um ataque aéreo americano iluminaram o estádio, como os relâmpados na estação da monção. Como uma criança a salvo em seu quarto na avenida Amherst, Jum tinha observado os relâmpagos que expuseram os ratos apanhados no meio da quadra de tênis e nas beiras das piscinas. Vera tinha afirmado que Deus estava tirando fotografias da maldade em Xangai.
J. G. Ballard, O Império do Sol
Ha Jin
Refugo de guerra
Um livro que aborda uma guerra muito pouco comentada na imprensa e literatura em língua portuguesa – A guerra das Coréias, especificamente quando a China envia seus soldados em apoio à Coréia do Norte, que atacou a pela Coréia do Sul, defendida com apoio dos Estados Unidos e Nações Unidas.
A maior parte da narrativa se desenvolve em um campo de prisioneiros na Coréia, controlado pelos Estados Unidos legalmente, mas informalmente pelos mesmos comandantes chineses, também aprisionados. E nesse ambiente de restrição, controle e escassez o personagem Yu Yuan, bilíngue e mais escolarizado que a maioria, passa por todos os tipos de dissabores e pequenas alegrias.
“Com que facilidade a humanidade se degenerava nas situações precárias. A que ponto o homem comum era capaz de chegar quando lhe faltava um objetivo maior do que ele próprio. Não estando organizada para o trabalho honesto ou para uma causa justa, aquela gente não passava de uma turba governada pelo instinto de sobrevivência.
Ha Jin, Refugo de Guerra.
Lisa See
Garotas de Xangai
Um romance que conta a vida de duas irmãs, inicialmente na vibrante Xangai dos anos 1930, com costumes e modo de viver totalmente diferente da China tratada em livros como “A Boa Terra” ou “Cisnes Selvagens”.
Essa distância fica muito clara ao se conhecer cidades como Pequim e Xangai e ver a diferença entre as duas hoje e ainda mais acentuada nessa época, quando Xangai era repartida entre as potências européias.
“Os músculos do rapaz se contraem com o esforço de puxar o riquixá. Logo, ele atinge um trote confortável e a velocidade do riquixá alivia o peso de seus ombros e costas. Lá vai ele, puxando-nos como um animal de carga, mas só o que sinto é liberdade. Durante o dia, uso um guarda-sol quando vou fazer compras, visitas ou ensinar inglês. À noite, porém, não preciso me preocupar com minha pele. Sento-me bem ereta e respiro fundo. Olho para May. Ela está tão à vontade que deixa seu cheongsam voar com o vento e abrir até a coxa. Ela é namoradeira e não poderia viver numa cidade melhor do que Xangai para exercitar suas habilidades, seu riso, sua linda pele, sua conversa encantadora.”
Lisa See, Garotas de Xangai.
O mesmo podemos dizer do choque de culturas nos Estados Unidos, onde as irmãs desembarcam após o sofrimento trazido pela fuga da invasão japonesa no início da 2ª Guerra.
Wei Hui
Xangai Baby
Sensual, beirando o erótico. Xangai Baby foi banido da China com 40 mil exemplares queimados em praça pública e sua autora Wei Hui chamada de depravada pela crítica oficial.
Para a literatura ocidental o livro está longe de ser depravado, mas para uma sociedade conservadora, com conceitos muito rígidos em relação ao papel e sexualidade feminina, foi um escândalo.
A personagem Coco é uma escritora dividida entre o amor por Tian Tian, chinês jovem viciado em heroína e impotente e Mark, um alemão casado e sexualmente atrativo. O livro foi entendido como uma metáfora entre o oriente decadente e o ocidente cheio de oportunidades e satisfações.
A noite em Xangai tem uma propriedade apaixonada e aflitiva. Voamos pelas ruas macias por entre luzes de neón e poeira dourada, enquanto os alto-falantes reproduziam a letra de Iggy Pop: “Somos apenas visitantes de passagem/Visitantes apressados/ Veja o céu repleto de estrelas/ Esperando para desaparecermos juntos”.
Você é capaz de fazer amor apaixonadamente, preocupar-se incessantemente, criar verdades ou destruir seus sonhos. O que quer que seja. Mas o que faz você realmente se admirar é por que Deus acha que pode apagar todas as estrelas com as suas lágrimas quando quer. Foi então que imaginei que alguma catástrofe estava para acontecer naquela noite – um desastre de carro, um acidente ao acaso para punçar nossa paixão e obsessão.
Mas não houve nenhum acidente. O carro chegou ao Parque Central de Pudong. Como estava fechado, fizemos amor do lado de fora da parede do parque, na sombra de um arvoredo. O banco dobrável cheirava a frivolidade e couro. Senti câimbras no pé, mas não falei nada, apenas suportei o incômodo até as minhas coxas ficarem molhadas com o sumo do nosso sonho.
Wei Hui, Xangai Baby
Mas o aspecto mais interessante do texto é a maneira franca com que trata do desejo e das aspirações da mulher chinesa contemporânea. Qual o limite do seu desejo e o quanto se pode extrapolar do que se considera adequado para uma garota? E qual o preço a pagar por isso?
Ainda restaram 02 livros comprados e não lidos nas leituras de viagem para China: A Montanha da Alma, grande romance do ganhador do Nobel Gao Xingjian e Caminhos da China de John Pomfret.
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