Viagens Invisíveis

Leitura de viagem: Nova York. Volta ao mundo

Indicações de leitura para uma viagem à Nova York. A primeira parada da volta ao mundo em livros e escritores que viveram a cidade e os Estados Unidos da América.

Fomos atropelados por uma epidemia de proporções mundiais, obrigando a todos, e todos na maior acepção possível do termo, a uma quarentena forçada. Uma corrente para que os que podem (ou ao menos os sensatos) fiquem isolados em casa e consigam diminuir a contaminação pelo vírus da Covid-19.

É muito difícil, como ser sociável e especialmente afetivo, ainda mais nesse lugar diferente chamado Bahia, manter o distanciamento, o afastamento físico.

Abandonar os hábitos de trabalho, atividade física, cursos, estudos formais e até as menores coisas que fazem parte do dia a dia, como ir na padaria tomar café. É um momento especialmente diferente, de recolhimento, convivência restrita aos mais próximos, em ambiente virtual ou por telefone.

Times Square, Nova York

Ainda nos próximos meses e até por um tempo indeterminado teremos somente isso. Só? Não, porque somos muito mais do que isso!

Os sonhos permanecem, desejos, planos futuros, talvez esquecidos ou abafados sob uma grossa camada de apreensão, medo e angústia da doença, do futuro incerto, da morte. Fomos balançados em nossa redoma de tranquilidade e rotina, passando a ver com contornos reais uma premissa que sempre esteve ai: não há futuro certo, ele nunca foi nosso.

Diante desse axioma, como manter a sanidade? Como se descobrir do pesado cobertor da desesperança?

Para mim além de contribuir e me informar: Planejar, produzir ou refletir, criar, sonhar…

Participar de grupos de ajuda aos mais necessitados, especialmente população de rua, também preenche o coração e ajuda a passar por esse momento.

E para alimentar os sonhos, o meu está detalhado no post da volta ao mundo de dezembro de 2020, indico as leituras de viagem que tenho feito para quando for permitido voltar a viajar.

Sempre haverá um dia ensolarado em Nova York

Os livros lidos para adubar a visão dos Estados Unidos, com ênfase em Nova York, primeira parada da grande aventura.

Não conheço NYC, então as fotos foram gentilmente doadas pelas minhas irmãs, que a visitaram. Nos Eua, conheci apenas Nova Orleans, Miami e Orlando, Nova York será a próxima cidade da América a ser visitada.

Deuses Americanos, Neil Gaiman

Leitura de viagem: Nova York

Quem são os deuses da América do Norte? Os Estados Unidos é cristão? Ou o dinheiro, o trabalho e o empreendedorismo ocuparam o lugar da abstração religiosa?

E as crenças antigas trazidas pelos pioneiros ainda persistem?

Deuses Americanos, Neil Gaiman

A ficção chamada Deuses Americanos, como o título intui, trata desses temas em uma aventura que percorre vários Estados do centro leste do país.

O personagem principal Shadow, ex presidiário, branco, desempregado, burro (adjetivo expresso por diversos personagens em relação ao protagonista) é abordado por um homem misterioso ao sair da cadeia.

No início do trajeto Shadow percebe que há algo diferente no ar, mas segue como anestesiado por sua tragédia pessoal. Vamos entender qual o objetivo de Wednesday e o ponto fulcral da viagem no meio do livro. Os deuses novos desejariam extinguir os velhos deuses, muito enfraquecidos pelo esquecimento e menosprezo dos americanos.

Sombra e Luz, Nova York

O povo dos Estados Unidos investiu sua religião, bem como sua moralidade, em títulos seguros e com rentabilidade garantida. Adotou a posição indevassável de nação que é abençoada porque merece ser, e seus filhos, quaisquer que sejam as teologias por eles adotadas ou desconsideradas, assumem essa crença nacional sem reservas.

Agnes Repplier, Times and Tendencies citado por Neil Gaiman , Deuses Americanos,

E esses novos deuses, a televisão, a informática, o dinheiro, a mídia, estão dispostos a arriscar tudo em uma guerra de proporções monumentais para isso. E parece que será muito fácil, já que os deuses antigos (alguns conhecidos, como Rainha de Sabá e Anúbis, por exemplo) mal conseguem sobreviver aplicando golpes e em subempregos.

A excelente crítica do Literatura em Pauta acerta ao afirmar que o livro peca em mostrar esses Deuses antigos em decadência, mas não trata dos que ainda detém poder e exercem uma enorme influência na sociedade ocidental, incluindo os EUA, como o cristianismo e o islamismo.

Discordo de um ponto da crítica, quando denota a passividade de Shadow como uma falha no desenvolvimento do personagem. Percebi Shadow como vivendo um luto que beira o patológico, a depressão e falta de sentido na vida, que vão amansando no correr do livro.

A passividade seria a defesa quanto aos fatos que lhe feriram tanto, que nada mais importa e nada é tão fantástico e demanda tanta energia quanto o sofrimento da traição que lhe corroí as entranhas.

Baia de Nova York

Não são as aventuras, nem as milhares de pessoas e deuses, que conhece ao longo do caminho, que fazem com que Shadow abra os olhos e veja onde se meteu. É o tempo, “um dos deuses mais lindos“*, que vai fechando as feridas do sofrimento.

Mais do que a grande saga de Shadow pelo interior dos Estados Unidos, há capítulos não numerados no livro. Como grandes parênteses, esses são chamados “Algum lugar nos Estados Unidos”, “Vinda à América” (em diversos períodos de tempo de 813 d.C a 1721).

São pequenos adendos à história principal, contando lendas sobre deuses. Foram meus pedaços favoritos da obra.

Salim tem medo de Nova York, por isso segura a maleta de amostras com ambas as mãos, protegendo-a junto ao peito. Tem medo dos negros, do jeito como eles o encaram, e tem medo dos judeus os que usam roupas todas pretas, chapéus, barbas e cachinhos nas laterais da cabeça, que ele consegue identificar, e sabe-se lá quantos outros que não consegue; tem medo da quantidade de gente, pessoas de todos os formatos e tamanhos, que saem de edifícios enormes e sujos e inundam as calçadas; tem medo da cacafonia de buzinas e tem medo até o ar, que exala um cheio ao mesmo tempo sujo e doce e é completamente diferente de Omã.

Deuses Americanos, Neil Gaiman

Depois de terminar o livro, soube que o autor é querido pelos apreciadores de comics, pela obra Sandman. Não tenho hábito de ler quadrinhos, então não o conhecia, ma me senti jovem ao saber desse detalhe.

A redoma de vidro, Sylvia Plath

Leitura de viagem: Nova York

O único romance da poeta americana Sylvia Plath é como afogar-se no seco. Trata da personagem Esther que, após um breve estágio em Nova Iorque, volta à sua pequena cidade natal no Estado de Boston.

A redoma de vidro, Sylvia Plath

Esther, uma jovem adulta, na transição da adolescência, parece ter um mundo de oportunidade pela frente. As violências das relações com o outro, especialmente agravadas com um episódio de violência sexual, leva Esther a uma espiral depressiva.

Por vezes me senti entediada, enraivada, não com a personagem, mas com o encadeamento das situações e como a vida e nós mesmos podemos ser auto opressores.

E essa opressão, que vem de fora para dentro, mas especialmente de dentro para fora, nos forçando a ficar no mesmo lugar, apontando para a impossibilidade de satisfazer as próprias aspirações e a dos outros ao mesmo tempo, é que torna o livro tão difícil.

Nova York no inverno

Após ler A redoma de vidro, vi algumas críticas que falavam da falta de motivo aparente para o declínio mental da personagem. Eu penso em milhares de motivos que poderia listar.

O primeiro e maior desencadeador: a violência sexual que mina a coragem e o pouco de auto confiança de Esther, Elly como se apresenta.

A falta de sentido em geral da vida para quem é forçado socialmente a fazer uma escolha que definirá seu futuro e o que você será pelo resto da vida. Ao menos é assim para muitos o modelo de escolha profissional no início da vida adulta. Mais fácil a apatia de nada escolher, mais fácil a morte.

Mas nem a morte é fácil e a apatia é vista como falta de controle e adoecimento. “Devidamente” tratada com choques e lobotomia.

E de clínica a clínica, de sofrimento familiar a sofrimento pessoal, a personagem trilha um caminho de sorte, com o encontro de outra mulheres que a ajudam no processo.

Rockefeller Center, Nova York

Interessante como os homens em geral causam mais dano do que alívio nesse romance, do misógino ao estuprador, do namorado, hipócrita na visão da personagem, ao médico loiro, bonito e inofensivo que aplica os primeiros choques em Elly.

Apenas no mundo feminino a personagem encontra algum alívio, seja em auxílio médico ou em cumplicidade para algumas pequenas contravenções.

E embora o cume da depressão da personagem aconteça em sua pequena cidade natal, a impressão sobre Nova York não é das melhores. A cidade que tinha tudo para ser uma grande oportunidade de crescimento pessoal e profissional, aos olhos de Elly é um buraco negro.

Nova York em si já era bem desagradável. Às nove da manhã a falsa e fresca umidade campestre que de alguma maneira se infiltrava durante a noite evaporava como o final de um sonho bom. As ruas quentes cintilavam sob o sol, com sua cor cinza-miragem ao fundo dos desfiladeiros de granito, os capôs dos carros fritando e brilhando, a poeira seca e fina soprando para dentro dos meus olhos e da minha garganta.

Sylvia Plath, A redoma de vidro.

Se a rua Beale falasse, James Baldwin

Leitura de viagem: Nova York

A redoma de vidro é a outra face da moeda de “Se a rua Beale falasse”. O primeiro caminha pelos vales sem resposta de como amadurecer, se encontrar enquanto mulher jovem e ao mesmo tempo cumprir as expectativas sociais e familiares.

Se a rua Beale falasse, James Baldwin

Já o segundo, “Se a Rua Beale falasse”, mostra que, mesmo se conseguirmos nos encontrar e encontrar amor e apoio familiar, se não correspondermos a certos aspectos de raça, gênero e classe social, a vida vai dar um jeito de nos por em nosso “verdadeiro lugar”.

Embora essas duas perspectivas pareçam pessimistas e até niilistas, os dois excelentes romances trazem finais, se não redentores, ao menos esperançosos.

“Se a rua Beale falasse” é um lindo romance. Não é auto referente como a redoma de vidro, já que a narradora é Tish, a namorada de Fonny (cujos nomes reais não são Tish, nem Fonny) preso injustamente e de quem espera um filho.

É verdade que não conheço muitas outras cidades, só Filadélfia e Albany, mas juro que Nova York deve ser a cidade mais feia e suja do mundo. Deve ter os edifícios mais feios e os moradores mais desagradáveis. Com certeza tem os piores policiais. Se existe algum lugar pior, deve ser tão perto do inferno que dá para sentir o cheio das pessoas sendo fritas. E, pensando bem, esse é exatamente o cheiro de Nova York no verão.

Conheci o Fonny nas ruas dessa cidade.

James Baldwin, Se a Rua Beale falasse.

Certamente, o que falta de auto referência no pensamento dos personagens ao longo dos diálogos, sobra de referências do mundo da música. O jazz e o blues toca o ritmo dos acontecimentos, e o próprio título não diz a rua em que a trama se desenvolve. É a rua em que Martin Luther King Jr foi assassinado em 19.

Poucos livros me dão vontade de retomar à primeira página para ler de novo, nesse caso não para tentar resgatar algo que foi perdido ou não devidamente apreendido, mas para aproveitar o ritmo sem pensar na trama. Para captar a leveza da escrita sem a mesma angústia da descoberta do drama de Tish e Fonny.

A luz de Nova York

Conheci James Baldwin ao ouvir meu podcast favorito Uma Leitura Toda Sua de @umacertagabi.

Reli o livro e ganhei a trilha sonora de NYC.

Um olho mais azul e Deus ajude essa criança

Leitura de viagem: Nova York

Dois livros da escritora Toni Morisson, primeira escritora negra a ganhar um Nobel, em 1993. Um olho mais azul escrito na perspectiva de Pecola Breedlove e sua amiga narradora. Pecola, a menina negra que quer ter olhos azuis.

Um olho mais azul é o relato de como há crueldade em um padrão de beleza euro-cêntrico, o que de mais difícil há em se olhar no espelho e aquela imagem não corresponder ao que se entende por limpeza, beleza, amor.

Skyline de Nova York

Ao mesmo tempo, o peso de conviver com a rejeição na mais tenra infância, a violência e a marginalização dentro da própria família e em outros ambientes que deveriam ser seguros, como a escola. Dramático sem ser piegas, tem os ingredientes de um ótimo romance, faz pensar, inquieta, ao mesmo tempo em que o coração chega a transbordar de compaixão.

Aí, parou de fitar as cadeiras verdes, o caminhão de entregas, e começou a ir ao cinema. Lá, no escuro, sua memória reavivou e ela sucumbiu aos sonhos antigos. Além da ideia de amor romântico, foi apresentada a outra – à da beleza física. Provavelmente as ideias mais destrutivas da história do pensamento humano. Ambas se originavam da inveja, prosperavam com a insegurança e acabavam em desilusão.

Toni Morrison, Um olho mais azul.

Bride ou Lula Ann, a protagonista de Deus ajude essa criança, poderia ser Pecola Bredlove, caso seu pai a tivesse abandonado e o emaranhado de violências dessa relação não tivesse acontecido. Bride, assim como Pecola, é negra, com a cor da pele mais escura do que seus familiares e amigos.

Esse tom de cor influencia e determina as decisões das personagens e contra elas, culminando em um desfecho trágico ou redentor.

No caso de “Deus ajude essa criança” o crescimento de Bride, como mulher, acontece de forma encadeada e relacionada com imagens específicas a seu desaparecimento corpóreo. É como se ela não se enxergasse, enquanto não compreende o que a levou a ser quem é.

O olho mais azul e Deus ajude essa criança, Toni Morrison

Bride acordou para o sol de um sono sem sonhos – mais pesado que embriaguez, mais profundo do que ela jamais conhecera. Então, tendo dormido tantas horas, sentia-se mais descansada e livre de tensão; sentia-se forte. Não se levantou de imediato; em vez disso, permaneceu na cama de Booker, olhos fechados, fruindo a fresca vitalidade e a ofuscante claridade. Tendo confessado os pecados de Luna Ann, ela se sentia renascida. Não mais forçada a reviver, não, a superar o desdém de sua mãe ou o abandono do pai. Saindo da divagação, ela se sentou e viu Booker tomando café na mesa desdobrável. Ele parecia mais pensativo que hostil. Ela sentou-se ao lado dele, pegou uma tira de bacon do seu prato e comeu.

Toni Morrison, Deus ajude essa criança.

Os dois romances não tratam de Nova York em si, mas de um aspecto muito importante da realidade norte americana, a questão racial e seus reflexos sociais e individuais.

The Great Gatsby, F. Scott Fitzgerald

Leitura de Viagem: Nova York

Separei esse para ler durante a viagem, talvez tentar resgatar a Nova York dos anos 20, com suas festas loucas e ambiente perigoso. Um pouco de dourado e purpurina não faz mal, não é verdade?

The great Gatsby

Normalmente escrevo para a série “leituras de viagem” após retornar, com fotos do local e algumas impressões. Como a volta ao mundo gerará muito conteúdo no blog e ficarei um tempo sem novos posts em virtude da quarentena, achei por bem inseminar a mente com novas ideias de leitura, antes de desbravar NYC, a grande maçã.

Outras sugestões? Escreve ai que ainda terei tempo de ler antes da viagem. A leitura de viagem de Nova York foi inesperadamente intensa.

Quer outras dicas de livros? Temos todas as leituras de viagem reunidas aqui.

*Música Oração ao tempo de Caetano Veloso.

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